Fintaste-me, coração

Há um ano atrás, lembro-me bem.

Durante o dia já estava bem mais frio do que aqui está hoje à noite. Estava longe, para lá dos 5 mil quilómetros de distância.

Há um ano atrás, quando imaginava o que iria estar a fazer hoje, continuava a imaginar-me nos Estados Unidos. A estudar ou a trabalhar, os dois até. Mas ainda nos Estados Unidos.

Afinal não é lá que estou. Vim embora porque lá o frio era muito. Quando vem o frio, parece que custa mais estar longe. Queremos o quente da família e da casa. E apesar de lá eu estar em casa de uma família, aquela casa não era a minha e a família não era a minha. E fazia frio, muito.

Nos meus dias livres eu apanhava o comboio e ia sozinha para a downtown de Chicago. Bastava pôr um pé fora do comboio, ainda no subterrâneo, e o frio passava logo para lá das penas do kispo e entrava, sem dó nem piedade, em todos os ossos do meu corpo. O choque fazia-me parar por uns segundos. Afagava a cabeça no gorro, no cachecol e no carapuço, enfiava as luvas e metia as mãos dentro das mangas. De mim, do meu corpo, só me enxergavam os olhos. Subia à rua e havia sol, quase sempre havia sol. Sol e frio ou, à medida que as semanas avançavam, sol e frio e neve.
Quando o sol se ia e o frio já não se aguentava, eu entrava na primeira coffee shop que aparecia.

Lembro-me de, num dia de há um ano atrás, estar sentada numa mesa comum da Starbucks que ia fechar em 15 minutos e já estava praticamente vazia.
Deixei que o empregado escolhesse por mim a bebida quente, não queria perder tempo e de qualquer das formas queria experimentar todo o menu, pelo que tive de abdicar do “vanilla late”. Achou ele que tinha de ser aos poucos e serviu-me me um “vanilla rooibos”.
A única pessoa que lá estava além de mim saiu uns três minutos antes do fecho e eu fiquei à espera que o emprego olhasse para mim com um sorriso em jeito de “vais ter de voltar para o frio”. Assim foi.

Tenho saudades daquele frio e daquelas saudades. Dei ouvidos ao meu coração e hoje tenho saudades de sentir saudades da minha família, da minha casa e do meu país.

Há um ano atrás, nesta ou noutra Starbucks, quando imaginava o que iria estar a fazer hoje, continuava a imaginar-me nos Estados Unidos. A estudar ou a trabalhar, os dois até. Mas ainda nos Estados Unidos.

Afinal não é lá que estou. Vim embora não pelas saudades nem pelo frio mas porque um dia, lá em Chicago, me deram um mapa mundo e eu, com pressa, quis mais – muito mais.

Fintaste-me, coração. Dei-te mais ouvidos a ti do que à minha razão e agora, o que resta, é a saudade das saudades.

Visto de entrada nos EUA
Visto de entrada nos EUA

Reparei há dias que no meu passaporte só consta o visto de entrada no país. O de saída ficou por carimbar.

(I)legalmente, eu continuo nos Estados Unidos da América.


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